segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Diário de um branco na Aldeia Boa Vista - 8º dia

Hoje o dia começou mais cedo. Como é o dia de preparação da roça para o plantio de mandioca, todos vão se reunir na cozinha ao lado da Casa de Reza para, coletivamente, começar o trabalho. Tiró toca tambor em frente a Opy às 6h em ponto. Ele toca e urra, feito um gorila. Aos poucos, ouvem-se vários urros de todos os lados da aldeia. As crianças também gritam. Estão bastante animados, uma vez que a roça vai beneficiar a todos. O café da manhã será coletivo.


Após todos terem comido, fomos roçar a área do plantio. Forma 7 índios e 4 diruás, contando comigo. Os outros três brancos são estudantes de agronomia da UFRRJ que estão desenvolvendo um estudo sobre a sustentabilidade da agricultura guarani. Das 8h30 às 10h30 toda a área já foi roçada. O local foi escolhido, pois antigamente índios moravam lá. Exatamente no local da futura plantação havia uma casa e um belo pomar. “Lá já foi uma área que produziu muito, é um terreno bem forte”, diz Altino. Ao final do trabalho, Ñanderu abençoou o local com uma chuva.

Durante os trabalhos no roçado, conversei com Antônio cujo nome em guarani é Tupã. Ele me contou algumas coisas sobre a religião. Ñaderu Eté é o deus supremo, criador. Como na mitologia grega, existem deuses abaixo dele, como Werá – deus do relâmpago, Tupã – deus do trovão, Jacairá – deus curandeiro e Caraí – o índio que decidiu atravessar o oceano e nunca mais voltou, pois foi levado por Ñanderu. Caraí significa pequeno deus.

A chuva continuou até por volta das 14h. O dia de trabalho não rendeu como o planejado. Amanhã, se parar de chover, serão roçadas outras duas áreas de plantio. Acostumadas a ficar soltas pela aldeia, as que mais sofrem em dia de chuva são as crianças, ficam presas dentro de casa. Por causa da chuva, nada mais aconteceu na aldeia.


Para quem tem toda a aldeia para brincar, ficar dentro de casa em dia de chuva é uma atividade difícil.

Hoje, na cerimônia de agradecimento, várias pessoas compareceram. Todos sentados em tocos, encostados na parede da Opy. Petyguas são acesos. O silêncio impera no loca, quebrado algumas vezes pela incessante alegria das crianças.

Aos poucos, os homens vão se levantando, indo em direção ao altar. No centro está uma cruz, e a sua frente, uma espécie de tigela comprida de madeira. Do lado esquerdo, pendurados na parede, estão as cestas e colares que representam o artesanato. Mais no canto, os bambus, que são instrumentos de acompanhamento usado pelas mulheres. Virando para o lado direito do altar, estão pendurados os instrumentos usados na celebração: violão, violino e tambor. Os dois primeiros introduzidos nas cerimônias pelos jesuítas. Logo depois o instrumento de acompanhamento dos homens, o chocalho.

A única coisa que dá para enxergar é a silhueta das pessoas, já que os aproximadamente 75m² da casa de reza são iluminados pela luz de apenas uma lamparina à querosene improvisada. Neste cenário, os homens fumam o petyguá e soltam a fumaça, primeiro no altar, depois nos instrumentos. Em seguida é a vez dos trabalhos de artesanato. Fazendo isso, através da fumaça do cachimbo, os maus espíritos são afastados.

Especialmente hoje, haverá uma cerimônia de benzimento. Uma das crianças da aldeia está doente, pedindo então para que Maurício, que também tem espírito forte e pode aliviar as dores por meio de rezas, benza a criança.


Foto de longa exposição durante o benzimento da criança na Opy.

A mãe senta-se em frente ao altar e põe a criança em sue colo. Enquanto isso, Maurício se concentra, e aos poucos vai se livrando do que é do mundo dos brancos: sapatos, relógio, camisa. Chegando ao extremo da concentração, o índio coloca na cabeça uma faixa, o ancáreguá. Essa faixa serve para amplificar a força de seu espírito, levando-o próximo a ñanderu.

Pronto e concentrado, Maurício acende seu petyguá. Levanta-se e caminha devagar e calmamente em direção ao altar. Fica parado em frente a ele, de costas para a mulher e sua criança. Solta bastante fumaça. Faz isso também em frente aos instrumentos e depois do artesanato, mas como se não tivesse a menor pressa.

A criança chora bastante, um choro doído, como se alguém a beliscasse ou lhe puxasse a orelha com bastante força. Maurício, então, fica de frente para a mulher. Assopra a fumaça de seu petyguá na direção da criança, e vai andando em volta das duas, sempre purificando a enferma. Nesse momento, o jovem Mimbí pega o violão e começa a tocar uma cantiga guarani. As mulheres se levantam e ficam do lado esquerdo, batendo os bambus (tacuapús) no chão para fazer o acompanhamento.

Maurício começa a falar palavras em guarani, como se evocasse alguma coisa. Tudo vai ficando, aos poucos, mais alto e mais forte, menos o choro da criança. O índio ajoelha-se e solta mais e mais fumaça na criança, num ritmo que beira o frenesi, até que o choro para. O ritual foi finalizado. A criança já não sente mais dor.

Mas o fim da dor é temporário. Maurício só pode aliviar a dor, somente o pajé tem o poder da cura. Se a dor fora causada por um espírito ruim que atormentava a criança, provavelmente não volte mais. Mas se esse espírito feriu a criança de alguma maneira, dentro de alguns dias a dor voltará, e será necessário que o pajé faça o ritual de cura.

O jovem que tocava violão cede seu lugar para Maurício, que pega o violão e faz um som como se estivesse afinando o instrumento. Dá um trago no seu petyguá, e começa a tocar, dando início a mais uma cerimônia de purificação e agradecimento de final de dia.

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