segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Diário de um branco na Aldeia Boa Vista - Prólogo


A partir de segunda-feira que vem começarei as postagens contando meu dia-a-dia na Aldeia Boa Vista em Ubatuba.
Em julho de 2006, passei 21 dias morando com os índios da etnia guarani mbyá para a realização do meu trabalho de conclusão de curso da faculdade de jornalismo.
Meu trabalho foi batizado de Ñandevá Ekuéry – Todos os que somos nós, e retratou a vida em sociedade dos índios desta aldeia nesse período.

 Foto: Capa do meu TCC


Essa foi uma experiência que mudou minha forma de encarar muitas coisas e que, aos poucos, serão publicadas aqui sob o título: Diário de um branco na Aldeia Boa Vista. Essas publicações serão a transcrição do meu diário que eu escrevi durante todo o tempo em que passei com os guaranis mbyá.
Para dar início aos relatos, posto hoje uma pequena síntese do bate-papo que tive com Sydney Possuelo antes da minha estadia na aldeia.
Possuelo é um sertanista, indigenista, explorador, ativista social e etnógrafo brasileiro, considerado a maior autoridade com relação aos povos indígenas isolados no Brasil. Ele começou sua carreira ajudando os famosos irmãos Villas Boas com o seu trabalho entre os povos indígenas da região do Rio Xingu. Mais tarde, Possuelo se tornou o diretor do Departamento de tribos desconhecidas (Departamento de Índios Isolados) da FUNAI (Fundação Nacional do Índio do Brasil).
Trabalhando nas áreas mais isoladas da região amazônica, Possuelo liderou muitas expedições e entrou em contato com tribos isoladas no Brasil, com o objetivo de protegê-las. Ele foi responsável, entre outros, para a restauração de contato pacífico com os índios Korubo, que já haviam matado alguns funcionários da FUNAI.
Por seus esforços, Possuelo recebeu muitos prêmios, incluindo prêmios da National Geographic Society, Bartolomeu de las Casas, em 1998, uma medalha de ouro da Royal Geographical Society, o título de "Herói do Planeta" pela Time Magazine Kids, bem como "Herói do Ano" de 2001 pela Organização das Nações Unidas.




Foto: Arquivo pessoal Sydney Possuelo


Consegui seu contato depois de uma entrevista, publicada nas páginas negras da Revista Trip. Após trocas de e-mails, a poucos dias da minha viagem para a Aldeia Boa Vista, conversamos por telefone. Segue abaixo o trecho do bate-papo que eu acho mais importante.
Lucas Lewin: Qual a maior dificuldade em viver com os índios?
Sydney Possuelo: A ausência de familiares, solidão, silêncio e o dia-a-dia pesado. Uma característica dos homens brancos é falar pelos cotovelos, o índio já é mais quieto e sabe viver consigo mesmo.
Lucas Lewin: Quais os cuidados que devem ser tomados nas aldeias?
Sydney Possuelo: Não existem cuidados específicos, o essencial é educação, pois educação é uma coisa universal, entendida por todo mundo, independente de raça, nacionalidade ou idioma. E também ser generoso. Generosidade é bem vinda em qualquer lugar.
Lucas Lewin: Conte uma experiência ruim na sua vivência com os índios e uma experiência que te marcou positivamente.
Sydney Possuelo: Culturas diferentes têm valores diferentes, estrutural social diferenciada. Às vezes, por utilizarmos nossos valores, podemos ofender. Quando trabalhamos com essas culturas diferenciadas, mantermo-nos como observadores é fundamental. Quando não sabemos das coisas, a melhor coisa a se fazer é não modificar nada, pois nossos valores podem estragar uma tradição, por exemplo.
Um exemplo dado pelo indigenista foi a passagem a seguir:
Caminhando na mata com guias indígenas, estava um menino, de aproximadamente 11 anos, com um tição de brasa na mão. Ele estava atrasando o grupo, pois de tempos em tempos ele parava para manter a brasa acesa.
Wellington, companheiro de Possuelo, estava se irritando com esse atraso, pois havia pessoas precisando de cuidados médicos. Sempre que o garoto parava para manter a brasa, os outros indígenas também paravam para esperá-lo. Wellington foi algumas vezes advertir o garoto, mas nada adiantava, pois o menino não entendia nada do que o homem estava falando.
Passada algumas horas de caminhada, quando já começava a anoitecer, Wellington se enfezou e apagou o tição do menino. A partir daí a caminhada começou a fluir melhor, porém uma grande tristeza tomou conta do garoto.
Depois de dois dias de caminhada, o grupo chegou à aldeia onde estavam os intérpretes. Então Wellington ofereceu ao garoto seu isqueiro, dizendo que com aquele instrumento ele poderia fazer fogo a toda hora.
Dito isso, através do intérprete, o garoto disse que aquele tição havia sido aceso por seu avô, que passou para seu pai e agora estava sob os cuidados dele, e desde que seu avô o acendeu, eles o mantinham aceso, mudando de galho sempre que necessário.
Neste momento, o que se tira de lição é que quando não se sabe das coisas, principalmente em uma cultura diferente, não mexa em nada, não queira modificar nada, pois somos carregados de valores, de conceitos que são diferentes em cada cultura, cada região, cada país, cada etnia; que pode nos levar a apagar o tição.



Foto: Lucas Lewin

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