segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Diário de um branco na Aldeia Boa Vista - 9º dia


Dormir na rede já está se tornando cansativo. Hoje acordei com a sensação de que não dormi nada. O dia começou às 7h30. Mesmo sendo dia de trabalho coletivo, não teve batucada de tambor para chamar a comunidade. Às 8h30 eles forma roçar a outra área de plantação de milho. Hoje não vou ajudar, pois é dia de vacinação na farmácia (maneira como os índios chama o posto de saúde). A campanha de vacinação de hoje é contra a gripe e contra a poliomielite. Também haverá tratamento odontológico para alguns índios.

De forma organizada e sem a presença dos pais, os indiozinhos formam fila para participar da campanha de vacinação.

Tomar vacina é uma tarefa difícil para alguns kyrigués, porém necessária.

Como os brancos, indiozinhos também tomam as "gotinhas" contra poliomielite.

Maurício, o vice-cacique, dando exemplo na vacinação contra a gripe.

No caminho para o posto, fui conversando com Dona Joana, Poty. Ela é filha de Seu Orlando e Dona Vicentina, uns dos mais velhos da aldeia. Separada do marido, que foi embora, Poty mora com os cinco filhos e a neta em uma singela casinha ao lado do campinho de futebol. Na semana passada, Poty foi para São Paulo acompanhar sua mãe em uma consulta médica. “Não gosto de São Paulo não, muito barulho”, disse a índia que completou sua fala dizendo que ama a Aldeia Boa Vista.

Voltando da vacinação, resolvi passar na casa de Dona Natália, Ñareté. Ela tem 93 anos e é a mais velha da aldeia. Nasceu no Rio Grande do Sul. Veio para São Paulo quando seus pais morreram. Desde então, passou por várias aldeias, sempre procurando um lugar para ela. “Não gostei de nenhum lugar”, disse a índia. Apesar da idade, ainda faz artesanato para vender na rodovia Rio-Santos. Ela mora sozinha e não tem mais parentes. “Não tem mais lugar pra mim aqui”, diz ela se referindo ao mundo, “estou só esperando minha hora chegar”, completou.

Ñareté, que aos 93 anos apenas espera sua hora chegar.

Depois do almoço saí para dar uma volta na aldeia. Fui parar na casa de Mário, Caraí Mirim, um jovem de 23 anos, casado e pai de duas crianças. Ele veio do Rio Grande do Sul aos 15 anos de idade. Já morou em várias aldeias, até na Argentina. “Para nós guaranis, não tem separação de Brasil, Paraguai, Argentina. É tudo uma coisa só”, explica Caraí.

Parou sua andança quando, a partir da Aldeia Bracuí (Paraty/RJ), saiu com um grupo de 15 índios para vender palmito em Ubatuba. Anoiteceu e eles não tinham vendido todo o palmito, então os amigos sugeriram que todos fossem dormir na aldeia da cidade, a Boa Vista. Mário relutou, pois estava com vergonha, mas acabou cedendo. No outro dia, acabaram de vender o palmito. Os amigos voltaram para a Bracuí, menos Mário, que decidiu ficar. Passaram cinco, dez, quinze dias e Mário continuava aqui, até que conheceu sua atual esposa. O índio se apaixonou e nunca mais foi embora da Boa Vista.

Ele está a um semestre de terminar seus estudos no supletivo. Pretende continuar estudando e cursar medicina. “Junto com os conhecimentos do meu povo, quero ajudar a curar várias doenças que ainda não tem cura”, afirma o índio. Sua ideia de fazer medicina surgiu quando ele conversava com o pajé de uma aldeia na Argentina. O pajé lhe disse que não existe doença sem cura, e completou dizendo que a cura para todos os males estava na natureza.

Mário acredita que o futuro do seu povo está nos estudos. “A FUNAI e a FUNASA passam os trabalhos para os próprios índios tomarem conta, se os índios não tiverem estudos, como vão administrar tudo?”, questiona Mário. Por esse motivo, ele sempre incentiva os outros índios a estudarem, mesmo com o preconceito que acabam sofrendo no mundo diruá e a distância e a dificuldade no acesso a aldeia. Os índios que estudam fora saem às 18h para irem para a escola e voltam somente à 0h30. Isso em uma região sem energia elétrica.

Nos dias de hoje, segundo Mário, há um grande conflito de gerações na aldeia. Os jovens querem manter as tradições, mas também querem se abrir um pouco mais às tecnologias do branco. “Os mais velhos são contra, e como são a liderança de hoje, acabam decidindo”, diz o jovem. Ele acha que tem que haver um meio termo para isso, para que as coisas sejam resolvidas mais facilmente. Mário é a favor e gosta de todas as tradições guaranis, “Só não pode ficar parado no tempo”, afirma.

Por volta das 17h, eu já tinha tomado banho (frio, só pra variar. Acho que estou ficando gripado, minha garganta está arranhando), e estava sentado à beira da fogueira vendo o tempo passar (que por sinal parece não ter a mínima pressa), quando chegou Seu Fidelis – Werá. Ele também sentou e colocou o café para esquentar.

O velho índio é irmão de Dona Santa, esposa do cacique, ele veio há um mês da Aldeia Rio Silveiras (São Sebastião) para visitar a irmã e uma de suas filhas, que também mora na Boa Vista. Sua esposa e a outra filha ficaram lá. “Vou voltar para lá, depois venho com minha família para cá. A gente faz uma casinha ali em baixo e fica por aqui mesmo”, explica Fidelis.

 Seu Fidelis se orgulha de ter sido um grande caçador na juventude. Caçava antas enormes, várias pacas e jaguatiricas, usando arco e flecha e armadilhas. Hoje, por causa da idade, diz o índio, se dedica ao artesanato, faz cestas, arcos e flechas, zarabatanas e chocalhos. Tomamos um café bem quentinho, depois Seu Fidelis foi para a casa da filha porque estava fazendo frio.

Fidelis, cunhado do cacique, pretende vir com a família para morar na Boa Vista.

Hoje, na reza do fim do dia, houve mais uma vez o benzimento da criança. Cheguei mais perto para ver melhor o que acontecia. O ritual foi igual. A criança está pelada. Maurício esfrega as mãos como se as esquentasse. O petyguá está na boca. O índio diz algumas palavras, chamando Ñanderú. Põe a mão na cabeça da criança e, fazendo uma espécie de cano com as mãos, solta fumaça purificadora na cabeça dela. Faz isso também nas costas e no peito da criança, só que desta vez espalhando a fumaça por toda a área do corpo.

Depois, Maurício põe o petyguá no chão, esfrega uma mão na outra. Pausadamente, olha para cima e, com muita força na voz, chama Ñanderú para si. Ele continua esfregando as mãos. Neste momento, Maurício reza em voz alta, quase gritando, e começa a esfregar suas mãos na criança. Com movimentos fortes e num ritmo frenético, passa a mão na cabeça, nas costas e no peito. A cada passada forte de mão, Maurício faz um gesto como se limpasse a sujeira das mãos, sempre afastando suas mãos do corpo da criança. Dá para notar que o índio sua muito, apesar do frio que faz. Isso porque o espírito de Ñanderú, que está em seu corpo, é quente como Cuaray (sol). Maurício pega seu petyguá do chão, agora com gestos mais suaves, e solta fumaça, muita fumaça, sobre a criança. Com ar de missão cumprida e um sorriso no rosto, Maurício faz carinho na cabeça dela e se afasta para continuar a celebração de agradecimento de final de dia.

Hoje aconteceu uma coisa diferente depois da cerimônia cotidiana. Tiró não rezou, ele puxou uma cadeira para o centro da Opy e direcionou a reza para as crianças. Elas, como num passe de mágica, sentaram-se próximas ao velho índio e ficaram em um silêncio quase que completo. Só de vez em quando se ouvia algum questionamento da história. À medida que Tiró contava a história, ele também encenava. As crianças prestavam atenção de uma forma, que parecia que estavam vendo todo o acontecido ali na frente delas.

Depois da história, as crianças cantaram e dançaram. Fizeram a dança de preparação dos xondáros, quando Tiró começou a lhes contar uma história sobre os guardiões da aldeia. Guardiões dos quais  Tiró é o líder. A celebração de hoje acabou por volta das 23h.

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