segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Diário de um branco na Aldeia Boa Vista - 6º dia

Essa noite fez bastante frio, além disso, dormir na rede já está se tornando um incomodo. Levantei e fui tomar café. Combinei com Tiró de subirmos a serra para buscar mel. Conosco foi Antônio, o primeiro índio nativo da Boa Vista que eu conheci, e sua esposa.

Em nossa caminhada serra acima, pude sentir o poder da Mata Atlântica: quente, úmida e com um batalhão de borrachudos, moscas, mosquitos e pernilongos nos atacando. Me veio à cabeça a cena do povo avançando no bolo de aniversário da cidade de São Paulo feito no bairro do Bexiga. Eu sou o bolo dos mosquitos!

Após os primeiros 40 minutos de caminhada, paramos para olhar uma preguiça que parecia dormir pendurada na árvore. Foi a primeira e única parada para descanso. Depois de observar a preguiça, continuamos a subida da serra. Uma hora e meia depois chegamos ao local onde estava o mel. Estava, pois não havia mais nem sinal de mel naquele lugar.

Mais meia hora caminhando e finalmente achamos a colmeia. Jataí, uma espécie de abelha que não tem ferrão. Nesse momento, Antônio e sua esposa voltaram para a aldeia para fazer almoço, pois já era quase 11h30. Tiró começou a cortar a colmeia com o machado. Depois de muito cortar, chega-se ao mel. Para a decepção, já estava quase tudo seco, não chegando nem a 100 ml de mel.

Após encontrar a colmeia, o primeiro passo é cortá-la  até chegar ao mel.

Normalmente o mel fica escondido bem no fundo da colmeia.

O mel de jataí tem o formato de bolinhas, com suas bordas açucaradas.

Voltando, Tiró disse que seus parentes estão todos na Argentina. Aqui no Brasil ele só tem os quatro filhos que moram na Aldeia Rio Silveiras. Ele me perguntou se eu tenho “caminhão”, se referindo ao carro. Respondi que sim. Num sotaque de portunhol ele disse: “Se você quiser, volta de caminhão pra cá no fim do ano que eu te levo para conhecer as outras aldeias, eu conheço todas, Parati, Rio Silveiras, Rio Branco...”. No caminho Tiró encontrou um cacho de bananas comido por algum animal. Neste local, ele fez uma armadilha chamada de mondepy. Amanhã voltaremos para saber se conseguimos pegar algum bicho.

Tiró analisa as marcas deixadas por um bicho nas proximidades da armadilha.

Até encontrar o mel, quem nos guiava pela trilha era Antônio. O som que reinava era o dos pássaros e dos pés pisando em galhos secos. De vez em quando, Antônio parava para explicar algo à esposa. Sua conversa parecia mais um sussurro de tão baixa que era. O tom era o de uma pessoa que falava com conhecimento de causa, seguro e convicto.

Depois do almoço, dando uma volta pela aldeia, encontrei Seu Maurício consertando uma tubulação de água. Parei e fiquei batendo papo com ele enquanto ele fazia seu serviço. O nome em guarani de Maurício é Werá Mirim, que significa “Pequeno Relâmpago”. Ele tem 52 anos, pai de 7 filhos, 2 já falecidos. Nasceu na Aldeia Rio Silveira, em São Sebastião. Seus irmãos, hoje casados com diruá, não vivem mais em aldeias.

Maurício, o vice-cacique, exercendo sua segunda função, a de construtor da aldeia.
 

Quando tinha 17 anos, seu pai morreu, e com ele a vontade de ser índio de quase toda a família. Seus irmãos e sua mãe saíram da aldeia, foram morar na periferia de Bertioga. Seu Maurício foi para o Guarujá trabalhar em obras. Foi lá que aprendeu tudo o que sabe sobre construção. Mesmo trabalhando e morando fora, nunca esqueceu a vida na aldeia, as pescarias, as caçadas, o plantio, as rezas.

Passados dois meses de trabalho no Guarujá, Maurício resolveu que iria voltar. Foi morar com a mãe, mas sempre que dava, voltava para a Aldeia Rio Silveiras visitar a avó. No ano que completou 19 anos, sua mãe resolveu casar-se novamente, só que desta vez com um diruá (homem não índio). Maurício então decidiu deixar a mãe e ir fazer o que sempre teve vontade: voltar a viver na aldeia. “Enquanto ela estava sozinha eu cuidei dela. Quando ela casou com diruá, fui viver minha vida”, disse Maurício.

Enquanto Maurício morava com a mãe fora da aldeia teve uma vida de homem branco. Até se alistou no exército, mas foi dispensado. “Mesmo tendo vida de branco, sempre lembrei com saudade dos mondeos que montava com meu pai, das cerimônias da casa de reza, de tudo”, desabafou o índio.

Já de volta a aldeia, Maurício morou com a avó. Neste período conheceu sua esposa, passando a morar com ela após o falecimento da avó. Maurício e sua esposa ainda não haviam se casado. Em 1975, a família de sua futura esposa decidiu se mudar para a Aldeia Boa Vista. Maurício continuou morando em Rio Silveiras por alguns meses, vindo para Boa Vista visitar por alguns dias. Depois de alguns meses muda-se definitivamente para Boa Vista e se casa. Maurício teve 7 filhos. A primeira morreu aos 13 anos, a segunda é casada, o terceiro morreu aos nove meses. Um dos filhos de Seu Maurício tem 18 anos e é deficiente. Também tem duas meninas kirygué (criança em guarani).

Hoje, Maurício é o construtor da aldeia: “Uso tudo o que aprendi com diruá para ajudar a comunidade”, diz. Também é o cacique substituto, quando Altino sai é Maurício que fica em seu lugar. Ele também faz benzimento e canta nos rituais, isso devido à força e fé na cultura guarani que ele traz em seu espírito.

Continuando nosso bate-papo, Maurício me explicou que Ñanderú é o espírito bom que fica no céu. Na terra também há espíritos: espírito da água, das plantas, espírito bom, mau. Quando se fuma petyguá, se está invocando o espírito bom, seja ele do céu ou da terra, e através da fumaça do petyguá, se manda embora o espírito e tudo mais de ruim que estiver na pessoa ou no objeto. Mas, como em qualquer, tem que haver fé e força no espírito. “O espírito mau não gosta da fumaça do petyguá”, diz Maurício.

Nas cerimônias de purificação ao final do dia, cada canção tem um significado pessoal e para cada instante, dependendo do espírito invocado e da força do espírito de quem está cantando. Então, se ela significa uma coisa para você agora, pode não significar a mesma coisa amanhã, e não significa a mesma coisa para outra pessoa. Nem o pajé sabe o significado no momento do canto, é uma coisa individual.

Na cerimônia de reza, os índios usam uma faixa na cabeça, chamada de ancá régua. Ela serve para amplificar a força do espírito e da fé que sai da cabeça, da mente. Antigamente, todos os índios mais velhos eram obrigados a usá-la ao entrar na Opy, Casa de Reza.
 
Ancá Reguá - elemento que aos poucos vem entrando em desuso pelos índios, tem a função de amplificar a força do espírito de quem usa.
 
Hoje, qualquer criança pode fumar o petyguá, mas isso não é muito bom para elas. O espírito das crianças ainda não é muito forte. Quando as crianças soltam a fumaça do petyguá e afastam maus espíritos, eles podem sentir que o espírito da criança é fraco, e depois podem voltar para fazer a criança ficar doente ou até mesmo machucá-la. Quando isso acontece, os índios mais velhos podem benzer, mas essa benzeção não cura, só alivia a dor. Só quem pode curar é o pajé.

Qualquer índio pode se tornar pajé. Diferentemente do que eu pensava, os conhecimentos de pajé não são passados de pessoa para pessoa, mas sim mostrados. Através de muita reza e dedicação à crença guarani, que fortalece o espírito, Ñanderú mostra os conhecimentos ao índio. “Só consegue se tornar pajé um índio que tenha o espírito muito forte, para poder combater os espíritos maus”, explica Maurício.

Maurício me contou que o pajé da Boa Vista é um pajé com espírito e crenças muito fortes, mas depois da morte de sua esposa ele se entregou à bebida. “Se ele continuar assim vai perder toda a sua força”, relatou Maurício.

No inverno não há muitas celebrações porque na hora do ritual de purificação, o espírito de Ñanderú se une ao espírito do índio. Ñanderú é um espírito quente, que chega até a esquentar o corpo de quem está rezando. Nessa época de frio, o calor de Ñanderú pode deixar o corpo doente, pois quando ele vai embora, o corpo esfria muito devido ao frio.

Desde que estou aqui na aldeia é a primeira vez que não tem celebração. Acho que seja porque está sendo a noite mais fria até agora.

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