segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Diário de um branco na Aldeia Boa Vista – 5º dia

Acordei no horário habitual. Seu Altino já estava pronto para ir até a reunião do Conselho de Educação. Tomei meu café com leite e tipa e fui para o posto da Funai, onde as pilhas do flash da minha câmera estavam carregando. Chegando lá, não encontrei ninguém, pois todos estavam na reunião.


Voltando, encontrei com Seu Maurício e os dois arquitetos da equipe que está trabalhando no projeto da Casa de Cultura. Foram recepcionados por Maurício não somente pela ausência do cacique, mas também pelo fato dele ser uma espécie de construtor da aldeia.

O local da construção foi demarcado. A casa vai seguir todas as leis ambientais, e também estará posicionada de modo que um lado esteja voltado para o nascer do sol e o lado oposto para o pôr do sol, fazendo com que a Casa de Cultura seja contemplada pelo sol o dia todo.
 
Os engenheiros que auxiliam na construção da Casa de Cultura são voluntários.

Cada detalhe do posicionamento da Casa foi minuciosamente pensado, sempre levando em consideração os costumes guaranis.

Após as medições e demarcações, subi até o posto da Funai com os engenheiros. Descendo a trilha de volta, encontrei com algumas crianças voltando da escola, estavam esperando o almoço, como não teve aula, também não teve almoço.

Ingrid, uma das indizinhas, perguntou meu nome. Eu disse. Depois disso todas as outras crianças começaram a repetir meu nome como papagaios. Em um determinado ponto, as crianças correram na frente. Quando de repente, Paulo surge do meio do mato e pula na minha frente e grita. Eles estavam brincando de me assustar. Isso aconteceu por uns 20 metros na trilha, com umas seis crianças. Até que chegamos na ponte.

Chegando próximo à Casa de Reza, encontrei Seu Benedito, o Tinho, que está trabalhando na construção das casas da CDHU. Ele é caiçara e conhece o povo da aldeia desde 1981, quando vinha jogar bola aqui. Segundo Tinho, muita coisa mudou por aqui, principalmente de uns 12 anos pra cá. A preservação diminuiu e a população de índios também.

Enquanto conversávamos, Tatiana, uma indiazinha, brincava com alguns pedaços de madeira da construção. Brincava também com meia garrafa pet, que ela enchia de água para encher uma lata. Passado algum tempo, apareceram mais três crianças. Eles tentavam abrir a porta da Casa de Reza. Fui lá e abri a porta para eles. Depois de algum tempo, descobri porque queriam entrar: Tatiana estava com um rato morto na mão. Ela acariciava o bichinho. Não resisti e intervi, a fiz jogar o bicho no mato e depois com que lavasse as mãos.
 
Pequenos índios brincando e agindo em conjunto.

Almocei hoje apenas com os netos e a mulher de Seu Altino. Juntamente com a comida, em uma panela ao lado, a esposa do cacique também fervia algumas ervas. Ela estava fazendo remédio para cicatrizar feridas. Depois do almoço fui para a minha rede descansar um pouco e fazer um cronograma do que eu ainda precisava fazer para o meu TCC.

Quando terminei o cronograma fui ao banheiro, no caminho encontrei com Seu Altino. Perguntei como havia sido a reunião. “A cultura do branco é diferente da nossa cultura. Eles querem que monte um time de futebol da criançada aqui. Vamos ver.” Respondeu o cacique com um tom bravo na voz. Ele também comentou que o município e o Conselho de Educação querem que haja mais atividades culturais para divulgar a cultura guarani. “Se o município quer ajudar vamos aproveitar”, disse Altino.

Quando eu estava no banheiro, duas crianças subiram no tanque para me espionar pela janela. Tem hora que tá louco viu?!?! Outra coisa que eu tenho que registrar é que eu estou impressionado com a incidência de pisadas na merda desse lugar! Se eu não pisar na merda pelo menos 4 vezes por dia é porque o dia ainda não acabou! Se, como dizem por aí, isso é sinal de sorte, quando eu sair da aldeia vou direto jogar na mega sena!

Por volta das 17h, Seu Altino me chamou para tomarmos café. Como sempre, conversamos sobre um monte de coisa. É um daqueles bate-papos informais que rendem boas informações. Começamos falando da lua. Como está quase cheia, falávamos da sua beleza. Quando toquei no assunto do pajé. Seu Altino disse que no inverno não tem muitas celebrações, rituais de cura, nada disso. Eles começam a partir do início do verão. “No inverno são só a de emergência”, brincou o cacique.

Então, Seu Altino começou a me explicar sobre as doenças. Existem dois tipos: a doença ñandeú e a doença diruá. A doença ñandeú é a doença de índio, normalmente de causas espirituais. Essas são curadas pelo pajé. As doenças diruá são as dos homens brancos, ou seja, doenças do corpo. Em casos mais simples o pajé trata com ervas e remédios naturais (como o remédio para cicatrizar feridas que a mulher do Seu Altino estava fazendo), nos casos mais graves, só o médico branco pode resolver.
 
Remédio natural sendo preparado no mesmo fogo que faz o almoço.

Mudamos para a questão da agricultura. Seu Altino me contou que na época que morava na Aldeia Rio Branco, os índios viviam somente do que plantavam, pescavam e caçavam. Como a aldeia ficava a uma hora e meia de caminhada da cidade, não havia invasão. A caça e a pesca eram abundantes o ano todo. A plantação era farta, plantava-se cana, milho, mandioca, inhame e hortaliças. O solo era muito bom.

No início da década de 70, quando Seu Altino mudou-se para cá, encontrou um cenário um pouco diferente. Quase não havia plantação. Seu Altino tentou fazer sua roça de qualquer maneira. Anos mais tarde, por meio da tese de doutorado de um aluno na Unesp, veio a descobrir que o solo da região é ácido demais, o que inviabiliza o plantio. “Dá para fazer plantação, mas não dá para viver apenas disso, porque as mandiocas e as espigas de milho são menores e demoram mais para ficarem boas”, explica o cacique.

Daí a explicação para a compra da maioria dos alimentos da aldeia. E para arrecadar dinheiro para a compra de alimentação, faz-se a venda de artesanato e de palmito. O palmito vendido não é extraído de forma ilegal, e sim cultivado ao redor da aldeia. Em um determinado local, está o “berçário” de sementes de palmito pupunha. São palmeiras de mais de 8 anos que têm a exclusiva finalidade de produzir sementes.
 
Berçario de sementes do Palmito Pupunha faz parte do projeto de plantio de manejo realizado na Aldeia Boa Vista.

Outro ponto da nossa conversa foi quanto a chegada da energia elétrica na aldeia. Com a finalização da obra das casas da CDHU, o programa “Energia para todos”, do Governo Federal, vai trazer energia elétrica para cá. A energia trará vários benefícios para os índios, como água quente para o banho. No inverno, principalmente, as crianças sofrem bastante na hora do banho. Porém, junto com os benefícios vem um mal que pode atrapalhar a manutenção das tradições: a televisão.

Perguntei se ele não tinha medo da televisão afastar os jovens da cultura guarani. “Mesmo antes da energia elétrica, aqui os jovens podem fazer o que quiserem. Se estão aqui é porque querem estar aqui”, afirmou Altino. Mas também me confessou que houve muita discussão sobre isso na comunidade, e ficou acertado que os mais velhos limitarão o uso da televisão. “Não tem como evitar, com luz elétrica, a televisão vai aparecer, então os mais velhos têm que controlar. Faz 30 anos que sou cacique, já cheguei a passar 20 dias na cidade, nunca gostei de televisão, na minha casa não vai ter”, diz o cacique.

Falei da dificuldade de encontrar livros sobre a cultura guarani em português. No livro “Coisas de índio”, de Daniel Munduruku, tem a seguinte citação do autor: “Eu nasci índio e gosto de ser índio”. Perguntei ao cacique se ele gostava de ser índio. “Eu sou índio e não quero mudar! E gosto tanto disso que luto para manter a cultura e as tradições”, respondeu Altino.

Hoje a cerimônia do final do dia foi bem animada. Maurício, Arlindo e Pedro cantaram, as mulheres fizeram uma espécie de coral. Mas o que realmente me espantou foi o fato das crianças se sentarem ao meu lado. Elas ficaram ao meu lado o tempo todo. Achei legal quando uma delas passou a mão no meu rosto. Ela achou diferente porque estou um pouco barbudo. Depois, todas as outras crianças também passaram a mão no meu rosto repetindo jagüá, jagüá, jagüá, que significa cachorro em guarani. Como índio não tem barba, acharam diferente.

Outra coisa legal, foi quando sentiram o cheiro do meu shampoo. Elas ficaram toda hora cheirando, passavam a mão no meu cabelo e depois no cabelo delas. Mó barato! Foi nesse momento que uma das crianças tirou seu colar e enrolou no meu braço transformando-o em pulseira.


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Devido às festas de final de ano, O diário de um branco na Aldeia Boa Vista no blog Nada + Pra Fazer volta na primeira segunda-feira do ano, dia 07/01/2013.

À todos que acompanham esta aventura, um Natal cheio de sentimentos bons e um Ano Novo repleto de novas experiências e realizações!!!

Forte abraço!!!

Lucas Lewin

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