segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Diário de um branco na Aldeia Boa Vista - 10º dia

Essa noite não passei tanto frio, a não ser nos pés, mas o que está incomodando agora é o desconforto da rede. Parece que em vez de descansar, eu estou cansando mais. Neste dia completa dez dias que eu estou aqui. Ao mesmo tempo que parece que o tempo voou, parece que faz uma eternidade que estou aqui. Ai que saudade de um banho quente, ai que saudade da minha cama.

Às 10h30, Seu Altino e Dona Santa partiram para São Paulo. Eles ficarão lá até sexta-feira. Dona Santa sofre de sinusite, e faz tratamento na capital há alguns anos. Tomando conta da casa e das crianças ficou sua filha Marina, Ñanboeté. De hoje até o retorno do cacique, o responsável pela aldeia será Seu Maurício. Mas isso não lhe deixa isento dos seus serviços de manutenção, para os guaranis cargos como cacique, pajé, xondáro, não isentam as outras responsabilidades de cada um.

Voltando do Posto de Saúde, Tiró e eu passamos na casa de Joaquim, que fica do outro lado do rio, no alto de um morro. É a única casa da aldeia que ainda é coberta por guaricanga. Sua esposa estava fazendo algumas pulseiras e colares, já estavam prontos alguns chocalhos, arcos e flechas, machados de pedra e zarabatanas. Não tivemos tempo de conversar, pois a kyrigué que estava dormindo acordou e começou a chorar quando me viu.


Guaricanga: planta usada por muito tempo pelos índios para cobrir suas casas, hoje seu uso foi proibido pelo IBAMA.

Última casa da Aldeia Boa Vista que ainda é coberta pelas folhas secas da guaricanga.


A esposa de Joaquim fazendo artesanato para vender na beira da Rio-Santos.

Indo almoçar, resolvi passar na casa do pajé. Pedi que Tiró fosse comigo, pois devido à reluta de todos para me apresentar para ele, achei que ele fosse bravo. Chegando lá, descobri que o pajé já era uma figura conhecida, é Seu Marcelino, Yamandú em guarani. Ele está sempre andando por perto da Casa de Reza.

Seu Marcelino nasceu no Paraná. Sempre acompanhou seu avô, que também era pajé. Bastante curioso, queria saber tudo o que o avô fazia. A cada ensinamento que recebia, além do seu conhecimento, crescia também a sua fé e a força de seu espírito. Aos 12 anos, seu avô já havia lhe ensinado a fazer remédios e a benzer. Ele já era um “rezador” – forma como Marcelino chama o auxiliar de pajé. Aqui na Boa Vista existem três auxiliares de pajé: Tiró, Maurício e Claudinho (filho de Marcelino), sendo que o mais forte deles é Maurício. Nenhum deles começou tão cedo quanto Marcelino. Anos mais tarde, com a morte de seu avô, Ñanderú o fez pajé. Isso já aqui na Tekoá Jexaá Porã. Yamandú é o pajé mais forte da região. Vem índio de todos os lugares atrás de seus conhecimentos e curas. Na época do batismo, tem dia reservado só para os índios de outras aldeias.

Yamandu, o pajé mais poderoso da região.

Mas a vida dele não foi somente de aprendizado bom, o pajé viveu um drama pessoal alguns anos atrás. Voltando de Ubatuba, sofreu um grave acidente de carro. A partir daí, não conseguiu mais andar muito bem, pois anda puxando uma perna. Quando sua esposa faleceu, no acidente, Marcelino não resistiu, e desde então tem bebido bastante. Com o apoio de toda a comunidade, aos pouco tem conseguido se reestabelecer.

Hoje, o pajé mora com um dos três filhos em uma casa próxima ao campo de futebol. O outro filho mora com sua esposa aqui mesmo na aldeia, e o terceiro mora no Espírito Santo. Também mora com ele José, um diruá que já morou em uma clínica de tratamento de viciados em álcool na cidade de Campos do Jordão.

Quase no final da tarde, Mimbí estava tocando violão enquanto eu escrevia. Decidi ir até lá, enquanto ele tocava, eu ia batendo no tambor. Fizemos algumas improvisações, foi bem divertido! Atraído pela melodia (ou falta dela), Tupã também apareceu. Depois do som começamos a conversar sobre a religiosidade guarani.

Tupã me contou que no altar, a cruz é onde os anjos dormem, as cestinhas não representam o artesanato, e sim as meninas da aldeia com menos de 10 anos. Para os meninos até essa idade, são colocados arcos e flechas. Os bambus, chamados tacuapús em guarani, representam todas as mulheres da aldeia com mais de 10 anos. O chocalho, baracá mirim, representa os homens. Dessa forma, toda a aldeia está representada no altar, assim como toda aldeia é purificada quando algum índio sopra a fumaça de seu petyguá nele. “Os guaranis não rezam para um e sim para todos, sempre”, afirma Tupã.

Altar Guarani: a cruz é o local onde os anjos da guarda descansam.

Os pequenos arcos e flechas representam os meninos menores de 10 anos de idade, e as cestinhas as meninas.

Os tacuapús, bambus que servem para ritmar as canções das cerimônias de reza, também representam as mulheres da aldeia maiores de 10 anos.

Para os guaranis, cada pessoa tem dois anjos: um que fica com a gente e um que fica no céu, olhando por nós. Depois da oração de agradecimento e purificação, o anjo que fica com a gente e nos protege durante o dia vai descansar e dorme na cruz que fica no altar. A partir daí, quem é o responsável pela proteção é o anjo do céu.

Na crença guarani, tudo na natureza tem espírito, que, assim como os homens, pode ser bom ou ruim, estar de bom ou de mau humor. Quando se está em um lugar afastado na mata, é necessário que se peça autorização para espírito para entrar na trilha, beber água, pegar uma pedra, etc. Se você fizer sem pedir, o espírito pode ficar bravo e te atacar. Um dos espíritos mais fortes e difíceis do pajé curar o ataque é o espírito da pedra.

Tupã também me contou que quando um índio fuma muito petyguá sem intenção de rezar, apenas por fumar, Kambá, um espírito, vem para pegar seu fumo. Se o índio não entregar, Kambá prende o espírito do índio no corpo, assim quando o índio morrer o espírito não vai para o céu, fica preso no corpo morto.

Essa noite somente Tiró e alguns jovens vieram rezar.


***

Devido às festividades carnavalescas, o Diário de um branco na Aldeia Boa Vista volta dia 18/02, se a ressaca permitir...
Bom carnaval!!! Para os que pulam e para os que não pulam!!!
Abraço

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