segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Diário de um branco na Aldeia Boa Vista - 12º dia


Não aguento mais dormir na rede, mas não tenho outra opção. Essa noite tentei deitar no chão para dormir, mas além da friagem, ainda tem os ratos que vez ou outra passam por cima da gente. Depois do café da manhã, subi na escola para fotografar as crianças em sala de aula.


Algumas poucas crianças assistem as aulas, a vida ao ar livre é bem mais chamativa do que  a vida em sala de aula.

Porém, a hora da merenda é um momento bastante disputado, isso por causa do cardápio diferenciado da rotina da aldeia.

 Aproveitei para conversar um pouco sobre os rituais de passagem da infância para a vida adulta. A partir dos 10 anos, as crianças são consideradas adultas. A passagem é marcada pela colocação do cambequá, uma espécie de piercing colocado logo abaixo do lábio inferior. O adorno é feito com madeira queimada pelo relâmpago. Quando o raio acerta uma árvore, para os guaranis, é um sinal que werá está abençoando aquela madeira, a deixando energizada de maneira que espante os maus espíritos. O furo para a colocação do cambequá é feita com espinho de porco-espinho. Ele é espetado no local que vai ser colocado o adorno e deixado lá. Aproximadamente duas horas depois, o espinho já atravessou o lábio. Essa é uma característica desse espinho.
Bichinho, existente em abundância na reserva, que cede seu mecanismo de defesa para os rituais guaranis de passagem para a vida adulta.

Depois do almoço, Tupã, Alexandre e eu fomos à casa de Marcelino para conversar. Infelizmente ele estava embriagado. Quem leva cachaça para ele é José, o homem branco que mora com ele e o chama de pai. Mesmo assim ele nos contou, em guarani, a história dele.

O índio nasce pajé, mas isso só é revelado a ele quando o outro pajé morre. Como o índio fica sabendo que é o novo pajé? Isso é um segredo muito bem guardado por todos os pajés guaranis.

Quando Marcelino tinha mais ou menos 18 anos, ele, seu avô e outros índios saíram do Paraná à pé com a intenção de, como karaí, atravessar o oceano. Na noite antes de partirem, Marcelino teve um sonho, e através do sonho, Ñanderú mostrou um lugar onde ele deveria começar uma aldeia. Todos partiram para seu intento. No meio do caminho, os outros índios foram aos poucos desistindo as ideia. Uns fugiam com a mulher de outros. Outras fugiam com o marido de umas. E outros apenas desistiam.

Próximo a uma cidadezinha do litoral norte do estado de São Paulo, seu avô faleceu. Antes, ele disse que estava morrendo porque não queria ver que somente poucos índios atravessariam o oceano. Neste momento, Marcelino chorou enquanto nos contava a história. Marcelino então resolveu carregar seu avô até a cidade para enterrá-lo. No caminho encontrou o local que sonhara e que Ñanderú mandara criar uma aldeia. O jovem carregou o corpo do avô até a praia e depois, de canoa, até a cidade de Ubatuba, conseguindo lá enterrar seu avô.

Voltando para o local, Marcelino descobriu que era o novo pajé. Também por meio de sonho, Ñanderú disse que o novo pajé precisava ir na cidade buscar o corpo do avô, senão ele não conseguiria subir até Ñanderú. O novo pajé assim o fez, e enterrou o avô na nova aldeia, junto à mata. Seu avô subiu para Ñanderú com corpo e tudo. E Marcelino, iluminado por Yamandú, deus de seu nome, se tornara o pajé da nova aldeia.

Se o índio for um pajé iluminado por Tupã, Werá ou qualquer outro deus, sua força é vulnerável, qualquer vacilo pode custar os poderes do pajé. Quando ele é iluminado por Yamandú, só o fim do mundo acaba com as forças do pajé. Daí a explicação do tamanho da força de Marcelino, e o porque de índios de outras aldeias vêm procurá-lo.

Nesta história, o que mais me chamou a atenção, foi quando fomo embora da casa de Marcelino. Tupã me confessou que mesmo tendo nascido na aldeia e mesmo tendo passado bastante tempo conversando com Marcelino, ele nunca havia ouvido a história de criação da Tekoá Jaexaá Porã, da Aldeia Boa Vista.

Já de noite, a cerimônia de purificação teve benzimento. Não participei, pois fiquei ouvindo histórias de Pytcham na beira da fogueira e depois tocando violão, violino e tambor até às 22h. Foi sensacional!

Nenhum comentário:

Postar um comentário