Não aguento mais dormir na rede, mas não tenho outra opção.
Essa noite tentei deitar no chão para dormir, mas além da friagem, ainda tem os
ratos que vez ou outra passam por cima da gente. Depois do café da manhã, subi
na escola para fotografar as crianças em sala de aula.
Algumas poucas crianças assistem as aulas, a vida ao ar livre é bem mais chamativa do que a vida em sala de aula. |
Porém, a hora da merenda é um momento bastante disputado, isso por causa do cardápio diferenciado da rotina da aldeia. |
Aproveitei para
conversar um pouco sobre os rituais de passagem da infância para a vida adulta.
A partir dos 10 anos, as crianças são consideradas adultas. A passagem é
marcada pela colocação do cambequá, uma espécie de piercing colocado logo
abaixo do lábio inferior. O adorno é feito com madeira queimada pelo relâmpago.
Quando o raio acerta uma árvore, para os guaranis, é um sinal que werá está
abençoando aquela madeira, a deixando energizada de maneira que espante os maus
espíritos. O furo para a colocação do cambequá é feita com espinho de
porco-espinho. Ele é espetado no local que vai ser colocado o adorno e deixado
lá. Aproximadamente duas horas depois, o espinho já atravessou o lábio. Essa é
uma característica desse espinho.
Bichinho, existente em abundância na reserva, que cede seu mecanismo de defesa para os rituais guaranis de passagem para a vida adulta. |
Depois do almoço, Tupã, Alexandre e eu fomos à casa de
Marcelino para conversar. Infelizmente ele estava embriagado. Quem leva cachaça
para ele é José, o homem branco que mora com ele e o chama de pai. Mesmo assim
ele nos contou, em guarani, a história dele.
O índio nasce pajé, mas isso só é revelado a ele quando o
outro pajé morre. Como o índio fica sabendo que é o novo pajé? Isso é um
segredo muito bem guardado por todos os pajés guaranis.
Quando Marcelino tinha mais ou menos 18 anos, ele, seu avô e
outros índios saíram do Paraná à pé com a intenção de, como karaí, atravessar o
oceano. Na noite antes de partirem, Marcelino teve um sonho, e através do
sonho, Ñanderú mostrou um lugar onde ele deveria começar uma aldeia. Todos
partiram para seu intento. No meio do caminho, os outros índios foram aos
poucos desistindo as ideia. Uns fugiam com a mulher de outros. Outras fugiam
com o marido de umas. E outros apenas desistiam.
Próximo a uma cidadezinha do litoral norte do estado de São
Paulo, seu avô faleceu. Antes, ele disse que estava morrendo porque não queria
ver que somente poucos índios atravessariam o oceano. Neste momento, Marcelino
chorou enquanto nos contava a história. Marcelino então resolveu carregar seu avô
até a cidade para enterrá-lo. No caminho encontrou o local que sonhara e que
Ñanderú mandara criar uma aldeia. O jovem carregou o corpo do avô até a praia e
depois, de canoa, até a cidade de Ubatuba, conseguindo lá enterrar seu avô.
Voltando para o local, Marcelino descobriu que era o novo
pajé. Também por meio de sonho, Ñanderú disse que o novo pajé precisava ir na
cidade buscar o corpo do avô, senão ele não conseguiria subir até Ñanderú. O
novo pajé assim o fez, e enterrou o avô na nova aldeia, junto à mata. Seu avô
subiu para Ñanderú com corpo e tudo. E Marcelino, iluminado por Yamandú, deus
de seu nome, se tornara o pajé da nova aldeia.
Se o índio for um pajé iluminado por Tupã, Werá ou qualquer
outro deus, sua força é vulnerável, qualquer vacilo pode custar os poderes do
pajé. Quando ele é iluminado por Yamandú, só o fim do mundo acaba com as forças
do pajé. Daí a explicação do tamanho da força de Marcelino, e o porque de
índios de outras aldeias vêm procurá-lo.
Nesta história, o que mais me chamou a atenção, foi quando
fomo embora da casa de Marcelino. Tupã me confessou que mesmo tendo nascido na
aldeia e mesmo tendo passado bastante tempo conversando com Marcelino, ele
nunca havia ouvido a história de criação da Tekoá Jaexaá Porã, da Aldeia Boa Vista.
Já de noite, a cerimônia de purificação teve benzimento. Não
participei, pois fiquei ouvindo histórias de Pytcham na beira da fogueira e
depois tocando violão, violino e tambor até às 22h. Foi sensacional!
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