segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Diário de um branco na Aldeia Boa Vista - O primeiro dia


Saí de Campos do Jordão por volta das 7h. Foi uma viagem tranquila, meu pai me levou para Ubatuba. Cheguei à Aldeia aproximadamente às 10h30. Seu Altino não estava. O esperei até quase meio dia, quando ele chegou. Conversamos, mostrei a autorização da FUNAI para ele. Ele pediu para que eu aguardasse que ele estava esperando uma ligação da Comissão Pró-Índio.

Tirei minhas coisas do carro e me despedi de meu pai. Passados uns 10 minutos, Seu Altino disse que eu poderia pegar minhas coisas porque já iríamos descer para a aldeia. Coloquei minha mochila nas costas, peguei o equipamento fotográfico e a rede. Deixei a cesta básica para depois.

Na trilha descemos: a esposa de Seu Altino, Seu Altino e eu. Pelos 700 metros de trilha ninguém trocou sequer uma palavra. Neste instante me lembrei do que Sydney Possuelo disse quanto a capacidade do índio de conviver com ele mesmo.

Chegando na aldeia, Seu Altino me mostrou onde eu iria dormir durante minha estadia: na Casa de Reza. Guardei minhas coisas no canto da Opy (Casa de Reza em guarani) e fui, a convite do Seu Altino, à casa do cacique.

Ele me convidou para entrar, me mostrou a casa (somente “sala” e “cozinha”) e me convidou para almoçar. “Já vamos preparar o almoço, você já almoçou?”. Respondi que não e disse que enquanto preparavam a refeição eu iria buscar a cesta básica. Voltei ao Posto da FUNAI e desci de volta para a casa do cacique carregando a cesta. Foram os 700 metros mais suados da minha vida, ô caixa pesada!!! Chegando perto da casa de Seu Altino abriu o fundo da caixa, derrubando duas latas de óleo e uma de extrato de tomate. Logo veio uma criança me ajudar.


Almoço sendo preparado na casa do Cacique

Depois de entregar a cesta, enquanto eu lavava meu rosto no tanque, apareceu o cacique para lavar um frango (congelado, daqueles comprados em supermercado). Conversamos sobre meu trabalho, mas falamos mais sobre a aldeia. A Aldeia Boa Vista foi reconhecida pela FUNAI em 1970, mas antes disso já existia. A reserva tem 920 hectares, sendo que quase tudo é de mata atlântica nativa.

Seu Altino nasceu na Aldeia Rio Branco, em Itanhaém, que em guarani significa pedra que sobe. Veio para a Tekoá Boa Vista no início dos anos 70. Ele também disse que não gosta de falar do passado da vida dele, por isso não insisti. Após o reconhecimento da Aldeia, Seu Altino foi o primeiro cacique.

Nos dias de hoje, cacique é um cargo político, de relacionamento. É através dele que a aldeia faz contato com os brancos, sendo o representante oficial da Tekoá fora dela. Por esse motivo, Seu Altino foi escolhido cacique, pois, na época, era um dos poucos que falava português.

A distribuição de “cargos” na sociedade guarani conta com as seguintes figuras:
- Cacique: representante da Aldeia;
- Pajé: cuida da saúde dos índios;
- Guardiões: índios responsáveis pela guarda e segurança da Aldeia. São liderados por um chefe.

Na comunidade, uns ajudam aos outros, mas sem perder a individualidade familiar. Cada família é responsável pela sua horta e sua alimentação, sendo somente de responsabilidade comum a roça de milho e de mandioca.

Iniciamos o almoço. Enquanto eu tirava minha comida, vi alguns fogões a gás enferrujados, jogados no mato. Perguntei se eles não gostavam de usar fogão, Seu Altino respondeu: “Cozinhar no fogão à lenha deixa a comida mais gostosa”. O cardápio era arroz, feijão e frango ensopado. Tudo sem o sabor que estamos acostumados, pois são temperados apenas com sal. Também teve suco de limão, Seu Altino até brincou: “É tudo natural”, se referindo ao suco que era em pó.

Depois do almoço, o cacique me mostrou as fotos da representante da Comissão Pró-índio, que fez um trabalho de resgate dos corantes naturais usados por eles. Ganhei um exemplar do livro.



Capa do livro feito pela Comissão Pró-Índio


Todos os adultos da Aldeia conhecem as tradições e costumes dos guaranis e passam para as crianças. O cacique falou que os guaranis sempre foram do litoral, e com a chegada dos portugueses foram fugindo para o Paraguai e Argentina, negando a teoria que eles tenham vindo de lá.

Seu Altino também me falou da intenção de ser criada na aldeia uma Casa de Cultura, para divulgar as tradições guaranis e aumentar a renda dos índios com a venda de artesanato e palmito, sempre através do turismo. Isso é de suma importância, haja vista que a FUNAI não destina verba para as aldeias. A maior fonte de renda deles é a venda de artesanato, somada à ajuda de custo do programa Bolsa Família e a aposentadoria dos mais velhos.

Na aldeia estão sendo construídas 50 ocas de alvenaria, dadas pela CDHU. “Foi difícil conseguir isso, a FUNAI era contra, dizendo que o índio ia perder a cultura. Mas quando a gente fazia oca de sapê, veio o meio ambiente e proibiu. Quando fez casa de pau-a-pique, a saúde não deixou. Telha, tijolo, vêm tudo do barro, é natural”, explicou o cacique.

No final da tarde, fomos para a Casa de Reza para que houvesse o agradecimento do dia. Nesse ritual os índios fumam o petyguá (cachimbo), soltando fumaça nos cantos da casa e nas pessoas presentes. Na cultura deles a fumaça purifica. Eles vão fumando, soltando fumaça e cuspindo no chão durante todo o ritual. Depois que todos fizeram isso, o Xondaro (guardião) cantou e tocou violão. Ao seu lado estavam cinco crianças, três do lado esquerdo batendo um bastão de bambu no chão, e duas do lado direito tocando chocalho. Todos de costas para o resto dos índios do local. Depois que fumam, parece que eles entram em transe. Quando termina o ritual de agradecimento, cada família vai para sua casa, isso por volta das 19h30.


O interior da Casa de Reza (Opy) é o cenário onde todas as noites acontecem os rituais de agradecimento


 
Os índios não têm rotina, vão fazendo as coisas conforme sua necessidade. Acordam quando têm vontade, almoçam na hora que dá fome e assim por diante. O mesmo acontece com o banho, que é em cachoeira ou em um chuveiro ao lado do banheiro, mas sempre com água gelada.

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