segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Diário de um branco na Aldeia Boa Vista - O segundo dia


No café da manhã, às 8h, foi feito café com leite e tipá, um tipo de pão feito somente com farinha de trigo e sal e frito em óleo quente. Por volta das 8h40, as crianças saíram em direção ao posto da FUNAI. Eles iam gritando, um grito bem alto e agudo, chamando umas as outras para ir à escola. O calendário da escola, que é estadual, é diferente das escolas dos brancos. As férias escolares são em abril, em comemoração ao dia do índio.

Na escola da aldeia tem somente até a 4ª série. Depois disso as crianças vão para a escola do bairro do Prumirim. Aqui na aldeia, até a segunda série, só é ensinado guarani; e na 3ª e 4ª série o guarani junto com a língua portuguesa.


Fachada da Escola da Aldeia
Conversando com a professora, fiquei sabendo que vários alunos continuam frequentando a escola, desde as séries iniciais, passando pela EJA (Educação de Jovens e Adultos), chegando até a universidade. Três índios da Boa Vista estão fazendo pedagogia na USP, sem contar a professora que é formada.

Logo que chegam à escola, as crianças tomam café, que normalmente é chocolate e pão com manteiga. Depois vão às aulas e ao meio dia almoçam para voltar para a aldeia. Durante o recreio as crianças brincam em um parquinho ao lado da escola. Eu estava longe, fotografando, quando de repente uma das crianças me viu e disse “tira foto” e começou a cantar, logo todas as outras também começaram a falar “tira foto” e a cantar. Foi bem legal! Entre os indiozinhos da aldeia, tem um albino, que não é rejeitado pelas crianças em nenhum momento. Diferentemente dos brancos, os índios se respeitam do jeito que cada um é.

Indiozinhos brincando sem discriminação às diferenças

A alimentação diferente da servida na aldeia é um chamariz para os indiozinhos frequentarem a escola

Normalmente as mulheres cuidam da casa e das crianças, sendo responsáveis também pela alimentação de todos na casa. Os homens ficam com o serviço pesado como catar e cortar lenha, caçar, pescar (essas duas últimas só na época de calor) e também buscar taquara e sementes para que as mulheres façam artesanato.

Hoje essa divisão de trabalho foi diferente na casa de Seu Altino. Sua esposa foi fazer exame na Santa Casa de Ubatuba bem cedinho. Por esse motivo, foi o cacique que ficou responsável pela comida da casa. O cardápio foi arroz, feijão, macarrão e frango frito.

Depois do almoço, Seu Pedro, o guardião, me chamou para ir até a cachoeira. Sua função, no idioma guarani, é Xondaro. Werá Poteinguá (nome guarani de Seu Pedro) é argentino. Veio há 26 anos de lá. Já morou em aldeias no Rio Grande do Sul e Paraná, e está na Aldeia Boa Vista há 10 anos.

Chegando a sua casa, Werá Poteinguá fez questão de mostrar suas armas. Um arco, flechas de matar desde passarinhos até onças, uma armadilha e uma arapuca. Um pouco antes de sairmos para a cachoeira a surpresa: Seu Pedro se vestiu como se fosse caçar. Enquanto esperava, Mimbí, que nos acompanharia na caminhada, fumava seu Petyguá.

Werá Poteinguá explicando o funcionamento de seu equipamento de caça

No caminho os dois cantavam e riam. Creio que tiravam sarro de mim, pois achavam que eu ia cair na cachoeira. Senti que conquistei o respeito dos dois quando fiz todo o percurso sem sequer escorregar. O lugar é lindo! Perguntei se branco ia lá, e Seu Pedro disse que sim, mas tinha que pagar R$5,00 por pessoa. Fazem o trabalho de xondaro Seu Pedro, que é líder, e mais quatro índios, sendo responsáveis pela segurança dos 920 hectares da reserva. Combinei com Seu Pedro que daqui dois dias vou com ele na ronda em mata fechada.

A cachoeira é uma das inúmeras riquezas naturais localizadas dentro da reserva indígena Tekoá Jaexaá Porã

Por volta das 16h, quando estava me preparando para tomar banho, chegou um grupo para visitar a Aldeia. Eles questionaram sobre dois pontos interessantes: o cemitério dos índios e sobre o matrimônio.
Os índios se casam por volta dos 16 ou 17 anos. “É para aumentar logo a população”, brincou Seu Altino. Antigamente eram os pais que escolhiam quem ia se casar com quem, hoje são os próprios jovens que escolhem. Não pode separar. Deixei-os conversar e fui tomar banho. A água estava muuuuito gelada!!! Mas valeu a pena, a sensação de banho tomado é única!

Após o banho, quando eu estava arrumando minhas coisas, Mimbí veio me chamar para jogar futebol. Os times eram formados por 4 jogadores e o gol era livre e pequeno. Três gols vira o campos e 6 gols acaba o jogo e cada um vai para sua casa. Mesmo não gostando muito de futebol fui jogar. Meu time venceu por 6x4.

A paixão nacional também faz parte do entretenimento dos guaranis da Aldeia Boa Vista

Nesta noite a reza de agradecimento foi um pouco diferente, após a reza e a purificação com a fumaça do petyguá houve uma espécie de assembleia geral da Aldeia. A reunião começou com Seu Altino falando e andando em círculos. Ele falou, falou, falou (tudo em guarani), depois Seu Maurício falou, falou, falou. Neste momento eles estavam falando sobre a construção da Casa de Cultura e o apoio da Comissão Pro-índio, através da figura da Selma. Ficou decidido que a preparação do local onde será construída a Casa de Cultura começaria na próxima semana e contaria com o trabalho de dez índios.

Nas assembleias todos têm direito de falar, e a decisão é tomada em conjunto. Hoje, uma índia com seu filho no colo também opinou. Uma jovem se levantou e disse que queria trabalhar fora da aldeia, o que deu início a uma discussão. No início os mais velhos tentaram desanimá-la, falando de FGTS, da necessidade de Carteira de Trabalho, que ela seria diarista. Foi quando outro jovem também começou a falar, dizendo que os mais velhos deveriam incentivar e não criticar o fato dos jovens quererem trabalhar fora. Eles querem poder estudar, terminar o ensino médio, fazer faculdade. A discussão é bem organizada, cada um fala tudo o que tem para falar, um de cada vez, sem interromper ou atrapalhar o outro. Também não há alteração no tom de voz. Vou descobrir o que se resolveu sobre tudo isso amanhã. Depois de encerrada a reunião, todos foram embora, menos Seu Pedro, que ficou cantando na Opy, a Casa de Reza.

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